Hemoglobinopatias: as doenças genéticas consideradas um problema de saúde global

As hemoglobinopatias, consideradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um problema de saúde global, são um grupo de doenças genéticas hereditárias recessivas causadas por mutações nos genes que codificam as cadeias globínicas da hemoglobina.

Os glóbulos vermelhos, também conhecidos como eritrócitos ou hemácias, contêm essa proteína essencial, cuja principal função é transportar oxigênio dos pulmões para os tecidos do corpo. As mutações nas cadeias globínicas resultam em alterações na síntese e estrutura da hemoglobina, prejudicando sua função.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 270 milhões de pessoas, ou seja, 5% da população mundial, carregam genes que determinam a presença de hemoglobinas anormais.

No Brasil, devido à intensa miscigenação, as hemoglobinopatias são comuns, tornando a investigação clínica e laboratorial essencial para minimizar os prejuízos à saúde dos indivíduos. Além disso, o aconselhamento genético é considerado uma ferramenta importante na orientação de casais portadores assintomáticos de um desses genes.

Neste artigo, abordaremos a importância do teste do pezinho para a identificação das hemoglobinopatias, bem como os tipos mais conhecidos e prevalentes e tratamentos disponíveis.

As Hemoglobinopatias

As hemoglobinopatias mais comuns em nosso meio são a doença falciforme e as talassemias, que serão detalhadas a seguir. A gravidade dessas síndromes varia, influenciando os sintomas e o tratamento necessário.

Anemia Falciforme

O grupo “doenças falciformes (Hb S)” engloba todas as condições que carregam o gene da hemoglobina S. A anemia falciforme é a forma mais grave.
Nas pessoas com essa condição, os glóbulos vermelhos, que antes eram flexíveis e arredondados, perdem a forma natural bicôncava, tornando-se disformes e rígidos, lembrando o formato de uma foice (palavra que se origina do latim “falx”, por isso o nome “falciforme”). Esse processo, chamado falcização, dificulta a passagem do sangue pelos vasos sanguíneos menores, causando bloqueios que impedem a chegada de oxigênio aos órgãos e resultam em dor intensa. Além disso, pessoas com doença falciforme frequentemente apresentam algum grau de anemia, que causa fadiga, fraqueza e palidez, e podem desenvolver icterícia.

Talassemias

As talassemias se caracterizam pela redução na quantidade de hemoglobina produzida no organismo, impactando na sua capacidade de transportar oxigênio. Em geral, afetam a cadeia alfa ou beta da globina. As formas mais comuns incluem a beta talassemia (β) e alfa talassemia (α).

As manifestações vão desde sintomas imperceptíveis até problemas que atingem o feto e, se não controladas, podem causar deformidades ósseas (inclusive faciais), fraturas, aumento do fígado e do baço, além de prejudicar as atividades físicas rotineiras.

Crianças com talassemia muitas vezes nascem saudáveis, mas tornam-se anêmicas entre os seis meses e dois anos de idade.

Outras Hemoglobinopatias

Além da Hb S, uma pessoa pode apresentar outras hemoglobinas alteradas, como as hemoglobinas C, D, E. Essas combinações possíveis com a Hb S também resultam em doença falciforme, apresentando sinais e sintomas semelhantes, e são tratadas de forma similar.

Herança e Prevalência

As hemoglobinopatias, incluindo a doença falciforme e as talassemias, seguem o padrão de herança mendeliana, o que significa que ambos os pais precisam ser portadores de pelo menos uma mutação para que a doença se manifeste nos filhos.

A doença falciforme é uma enfermidade hereditária prevalente principalmente entre as populações originárias da África subsaariana, Índia, Arábia Saudita e de países mediterrâneos. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, estima-se que mais de 2 milhões de indivíduos sejam portadores do gene hemoglobina S (HbS,) e que mais de 8 mil sejam afetados pela forma homozigótica (HbSS)1.

As talassemias, por sua vez, são mais comuns entre europeus e seus descendentes. No Brasil, essas condições genéticas também são encontradas devido à diversidade étnica da população.

A investigação diagnóstica das Hemoglobinopatias

O diagnóstico das hemoglobinopatias é complexo e requer uma combinação de dados clínicos, hematológicos e genéticos2. Os principais exames utilizados incluem3:

  • Teste do pezinho: Essencial para o diagnóstico precoce, realizado entre o terceiro e o quinto dia de vida. Detecta anormalidades que podem ser confirmadas por exames adicionais.
  • Hemograma: Avalia a contagem e a forma das células sanguíneas.
  • Testes de falcização e solubilidade: Identificam a presença de hemoglobina anormal.
  • Eletroforese de hemoglobinas: Analisa os tipos de hemoglobina presentes no sangue.
  • HPLC (cromatografia líquida de alta resolução): Detecta e quantifica hemoglobinas anormais.
  • Focalização isoelétrica: Técnica de separação das hemoglobinas.
  • Testes de biologia molecular: Identificam mutações genéticas específicas.

Quando alguma anormalidade é detectada na triagem neonatal, são realizados exames complementares para confirmar o diagnóstico: HPLC (High Performance Liquid Chromatography, em inglês), teste de solubilidade e eletroforese.

Crianças e adultos com suspeita de alguma hemoglobinopatia – e que apresentam sintomas como anemia, fadiga, palidez, icterícia, dores nas articulações, atraso no crescimento e na puberdade, além de úlceras nas pernas e febre, por exemplo – são diagnosticados por meio de exames de sangue, como a eletroforese de hemoglobina. Além disso, outros testes podem ser solicitados, tais como o HPLC, focalização isoelétrica e dosagem de hemoglobina.

Triagem Neonatal: um aliado no diagnóstico precoce das Hemoglobinopatias

As hemoglobinopatias geralmente não apresentam sintomas no nascimento, sendo assim a triagem neonatal é uma ferramenta crucial para o diagnóstico em recém-nascidos, possibilitando intervenções terapêuticas imediatas que podem impactar positivamente os resultados clínicos.

Os protocolos de triagem neonatal para hemoglobinopatias são elaborados para garantir a sensibilidade e a especificidade necessárias na detecção dessas condições complexas. Isso envolve a seleção de testes específicos capazes de identificar com variantes anormais da hemoglobina com alta confiabilidade. Uma vez identificadas as anormalidades, os profissionais médicos podem iniciar medidas apropriadas, como intervenções clínicas personalizadas para obter o melhor manejo possível, bem como oferecer aconselhamento genético para os pais.

Além de fornecer informações vitais sobre a presença de anormalidades na hemoglobina, a triagem neonatal desempenha um papel fundamental na prevenção de complicações graves associadas a essas condições.

Os dados do Programa de Triagem Neonatal brasileiro ilustram a importância dessa intervenção. Entre os anos de 2014 e 2020, a média anual de novos casos de crianças diagnosticadas com doença falciforme foi de 1.087, com uma incidência de 3,75 a cada 10 mil nascidos vivos. Esses números destacam a prevalência significativa da doença, estimando-se que entre 60 mil a 100 mil pessoas convivam com essa condição no Brasil4.

O Tratamento

Para o tratamento das hemoglobinopatias, diversas abordagens são adotadas, dependendo da gravidade e do tipo da condição. Isso pode incluir transfusões de sangue regulares, terapia quelante de ferro para remover o excesso de ferro, suplementação de ácido fólico, profilaxia com penicilina em determinadas situações, e em alguns casos, terapias mais avançadas, como o transplante alogênico de medula óssea.

Além disso, recentes avanços na medicina, como a terapia gênica utilizando CRISPR-Cas9, estão oferecendo promessas significativas para o tratamento curativo de algumas hemoglobinopatias5.

A detecção precoce das hemoglobinopatias é essencial para se iniciar a linha de cuidado para os indivíduos afetados. É importante destacar que o acompanhamento de cada indivíduo deve ser feito por uma equipe multidisciplinar, que inclui médicos hematologistas, geneticistas, equipe de enfermagem, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, neurologistas, infectologistas, dentistas, pedagogos e farmacêuticos. Juntos, esses especialistas colaboram para oferecer uma abordagem abrangente e compassiva, garantindo o bem-estar integral dos pacientes.

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Referências

  1. Ministério da Saúde. Manual de Diagnóstico e Tratamento de Doenças Falciformes. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/anvisa/diagnostico.pdf. Acesso em 10/06/24.
  2. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbhh/a/6xykMK3SWJNQMy8MfG6ZkRk/. Acesso em 10/06/24.
  3. Por dentro da pesquisa. “Hemoglobinopatias: conceito, diagnóstico e tratamento”. Disponível em: Por dentro da Pesquisa – “Hemoglobinopatias: conceito, diagnóstico e tratamento” . Acesso em 10/06/24.
  4. Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/doenca-falciforme. Acesso em 10/06/24.
  5. Jornal da USP. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/reino-unido-aprova-terapia-genica-para-anemia-falciforme-e-talassemia/. Acesso em: 10/06/24.

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