As Doenças Metabólicas Hereditárias e Suas Manifestações no Sistema Nervoso

As doenças neurológicas afetam 43% da população mundial, ou seja, 3,4 bilhões de pessoas. Entre as cinco condições mais comuns, estão o acidente vascular cerebral (AVC), a encefalopatia neonatal, a enxaqueca, as demências (incluindo Alzheimer) e a neuropatia diabética.1

No Brasil, a incidência de problemas no sistema nervoso vem aumentando ao longo dos anos. Em 2021, o número de pacientes neurológicos era de 47.536 em cada 100 mil indivíduos. No mundo, a média de perda coletiva de anos de vida para essas condições é de 5.638.2

Alterações neurológicas, tais como crises epiléticas, distúrbios do movimento, deficiência intelectual e hipotonia, são alguns sinais também encontrados em indivíduos com Doenças Metabólicas Hereditárias (DMH). Nessas condições, a alteração de um gene pode levar à alteração na produção, quantidade e/ou funcionalidade de uma proteína, interferindo em rotas metabólicas essenciais para o organismo. Esse mecanismo pode provocar graves sequelas, como a deficiência mental.3

A maioria das DMHs pode aparecer em qualquer idade e afetar os sistemas nervoso central e periférico. Os sintomas, por vezes intermitentes, são de difícil identificação, tornando a jornada de diagnóstico trabalhosa e desgastante, tanto para o paciente, quanto para a família. Além disso, estudos demonstraram que 85% das DMHs que são conhecidas por causar atraso global no desenvolvimento intelectual em crianças foram diagnosticadas em pacientes adultos com sintomas neurológicos.4

Neste artigo, você vai saber mais sobre como as Doenças Metabólicas Hereditárias (DMHs) podem afetar o sistema nervoso, causando sintomas neurológicos. Entenda como identificar essas manifestações para garantir uma investigação rápida e um tratamento adequado, prevenindo danos neurológicos irreversíveis.

O que são as Doenças Metabólicas Hereditárias (DMH) e como elas se dividem?

As Doenças Metabólicas Hereditárias são doenças genéticas causadas por mutações que provocam o mau funcionamento de alguma via metabólica relacionada ao processamento ou armazenamento de moléculas, como carboidratos, proteínas e ácidos graxos, levando a um desequilíbrio químico no organismo e o aparecimento de manifestações clínicas.

A maioria das DMHs é de herança autossômica recessiva, ou seja, apresenta risco de recorrência de 25% para cada gestação de pais heterozigotos. Outras são de herança ligada ao cromossomo X, e, portanto, a mãe é portadora da mutação. Isso quer dizer que a possibilidade de recorrência é de 50% para os filhos e o risco de 50% das filhas serem portadoras da mutação e transmitirem aos seus descendentes. Por fim, existe um pequeno grupo de doenças mitocondriais em que o risco de recorrência é variável quanto ao comprometimento dos filhos de ambos os sexos.5

Há mais de 700 doenças metabólicas hereditárias descritas6, mas seu número cresce à medida que as tecnologias de detecção vão sendo aprimoradas. A classificação mais aceita é a de Jean-Marie Saudubray7, que dividiu as DMHs em três grupos:

  1. Distúrbios de moléculas complexas

Apresentam sintomas permanentes e progressivos, sem relação com a ingestão alimentar. Aqui entram as doenças de depósito lisossomal (mucopolissacaridoses, esfingolipidoses, mucolipidoses). Entre as manifestações clínicas podemos destacar: hidropsia fetal, ascite, hipotonia, convulsões, hepatomegalia e/ou esplenomegalia, entre outras. 

  1. Distúrbios do metabolismo energético

Neste grupo estão incluídas condições causadas por alterações no metabolismo intermediário do fígado, músculos ou cérebro, como as glicogenoses, os defeitos na gliconeogênese, acidemias lácticas congênitas, defeitos de oxidação dos ácidos graxos e doenças mitocondriais de cadeia respiratória. Os sintomas mais comuns são: hipoglicemia, hiperlacticemia,  hipotonia generalizada grave, surdez neurossensorial, miopatia, cardiomiopatia,  retardo de crescimento, insuficiência cardíaca, colapso circulatório e síndrome da morte súbita na infância.

3. Distúrbios de moléculas pequenas

Com manifestações clínicas de intoxicação alimentar agudas ou crônicas, as doenças que compõem esse grupo apresentam intervalos livres de sintomas e relação evidente com a ingestão alimentar. Alguns exemplos são as aminoacidopatias, fenilcetonúria, os defeitos do ciclo da ureia e intolerância aos açúcares (galactosemia). 

Como, em muitos casos, há sobreposição clínica de sinais e sintomas, geralmente o diagnóstico das DMH é tardio ou, por vezes, nunca realizado.8

Como as Doenças Metabólicas Hereditárias se manifestam?

Os pacientes com DMHs podem apresentar uma variedade de sintomas, muitos dos quais dependem da(s) via(s) metabólica(s) específica(s) envolvida(s). Estudos mostram que indivíduos com essas condições podem apresentar níveis elevados de acidose e amônia, além de baixos níveis de açúcar no sangue, variação nos testes de função hepática e irregularidades nas células sanguíneas. Algumas pessoas podem apresentar convulsões, atrasos no desenvolvimento e no crescimento.9

Outras pessoas apresentam manifestações neurológicas e psiquiátricas (estas últimas estão presentes em quase todas as DMH que acometem o sistema nervoso), como desvios no desenvolvimento psicomotor, regressão psicomotora e convulsões.10

Níveis elevados de aminoácidos na urina (também chamados de aminoacidúria), por exemplo, são uma das principais causas de deficiência intelectual ou transtorno invasivo do desenvolvimento (caracterizado por importante atraso no desenvolvimento em diferentes áreas como a socialização, comunicação e relacionamento interpessoal).

A fenilcetonúria foi uma das primeiras DMHs a ser investigada de forma minuciosa, e hoje, com o diagnóstico precoce, uma dieta correta e individualizada evita o desenvolvimento de disfunções cognitivas. Caso a intervenção não aconteça, há o surgimento de sintomas psiquiátricos, particularmente a agorafobia. O regime alimentar direcionado também vale para gestantes diagnosticadas com fenilcetonúria, evitando que o filho desenvolva deficiência cognitiva ou distúrbios de comportamento posteriormente.

Outra DMH é a doença de Wilson. Nela, como o fígado não excreta o excesso de cobre na bile, o acúmulo deste elemento causa danos ao órgão. Pelo menos 20% dos pacientes com essa condição terão manifestações psiquiátricas, como alteração de personalidade, episódios de depressão, disfunção cognitiva e psicose.11

Existem, ainda, as doenças mitocondriais. Os primeiros sintomas de doenças de depósito das grandes moléculas de início tardio costumam ser a queda de  desempenho escolar, demência ou mudança de personalidade; das formas juvenis tardias ou adultas das leucodistrofias, da doença de Gaucher, e da de Niemann-Pick. A esse quadro psiquiátrico podem se associar manifestações neurológicas como sintomas e sinais extrapiramidais, cerebelares e distúrbios do movimento ocular.

A identificação correta permite o direcionamento para o tratamento mais adequado, modificando a forma como a doença se desenvolve, minimizando sintomas e manifestações neurológicas, gastrointestinais, oftalmológicas, dentre outras.

Como identificar Doenças Metabólicas Hereditárias?

Algumas DMHs, como a fenilcetonúria e a deficiência de biotinidase, podem ser investigadas já nas primeiras horas de vida por meio do Teste do Pezinho – teste de triagem neonatal obrigatório e disponível em todo o Brasil. A identificação ainda na fase neonatal permite uma intervenção precoce, prevenindo que o paciente desenvolva danos irreversíveis para a saúde como um todo, incluindo sequelas neurológicas.

Já a investigação de DMHs em crianças, adolescentes e adultos é diferente e pode ser iniciada a partir da observação de sinais clínicos como: 

  • Convulsões; 
  • Hipoglicemia; 
  • Comprometimento hepático;
  • Complicações tromboembólicas; 
  • Cardiomiopatia; 
  • Manifestações neuropsiquiátricas e de comportamento.

Indivíduos que convivem com essas manifestações podem se beneficiar de uma investigação rápida e adequada, antes mesmo do surgimento de sequelas irreversíveis. No Brasil, há testes específicos para a investigação de Doenças Metabólicas Hereditárias em indivíduos com sintomas clínicos não específicos, como o Neuro MetaTest™.

Neuro MetaTest™: exame para a investigação de DMHs em crianças, adolescentes e adultos

Desenvolvido e disponível no Brasil, o Neuro MetaTest™  analisa aproximadamente 300 DMHs de manifestação tardia e potencialmente tratáveis por meio de análises bioquímicas e genética molecular. A coleta do material biológico é simples (sangue em papel filtro especial e urina) e o resultado sai em até 10 dias úteis.

Ele pode ser indicado quando o paciente apresentar alguns dos seguintes sinais e sintomas:

• Coma;

• Hemiplegia alternante aguda/subaguda;

• Edema cerebral;

• Leucoencefalopatia;

• Ataxia aguda intermitente;

• Manifestações neuropsiquiátricas e de comportamento;

• Miopatias;

• Acidente vascular cerebral;

• Oftalmoplegia;

• Distonia;

• Coréia;

• Demência;

• Hepatoesplenomegalia;

• Neuropatia periférica;

• Hipoglicemia;

• Comprometimento hepático;

• Convulsões;

• Paraparesia espástica progressiva;

• Cardiomiopatia;

• Complicações tromboembólicas etc.

Esse exame combina análises bioquímicas e genética molecular, utilizando metodologias avançadas como Espectrometria de Massas em Tandem (EMT), Cromatografia Gasosa acoplada à Espectrometria de Massas e Sequenciamento de Nova Geração (NGS). Isso permite uma investigação abrangente das possíveis DMHs, auxiliando na decisão clínica com intervenções precisas que podem melhorar significativamente a saúde do paciente e até mesmo evitar óbitos precoces.

O diagnóstico correto para um tratamento assertivo

As doenças metabólicas hereditárias são individualmente raras, mas coletivamente numerosas.12  Clinicamente, apresentam considerável expressividade fenotípica desde formas mais leves/atenuadas até formas de apresentação progressiva com importante impacto não só na vida do paciente, mas também na sua própria sobrevida, não sendo incomum pacientes apresentarem óbito em idade precoce como consequência dessas enfermidades13

Com a evolução das técnicas de diagnóstico e exames de genotipagem, outras DMHs vêm sendo descritas a cada ano e a tendência é que cada vez mais pacientes sejam diagnosticados. Além disso, o progresso no desenvolvimento de novos fármacos e o avanço nas pesquisas em terapia gênica pode oferecer tratamentos mais eficazes e individualizados.

Nesse contexto, é fundamental que os profissionais de saúde reconheçam as diversas formas de manifestação dessas doenças genéticas, que vão além do metabolismo e afetam significativamente o sistema nervoso. A observação cuidadosa da relação entre o acúmulo de substâncias tóxicas e as alterações neurológicas é crucial para uma identificação precoce, possibilitando um diagnóstico assertivo e intervenções que previnam sequelas graves e irreversíveis, transformando de maneira positiva a trajetória do paciente.

Para isso, o profissional de saúde conta com o Neuro MetaTest™, que oferece ao paciente a agilidade no direcionamento de diagnóstico para uma intervenção clínica assertiva. Além disso, o laudo médico final descreve os resultados e suas interpretações como um exame único, possibilitando, também, um bom aconselhamento familiar que inclua, principalmente, o prognóstico do paciente e o risco de recorrência da doença.

Referências

1. 2 Global, regional, and national burden of disorders affecting the nervous system, 1990–2021: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2021, in Lancet Neurology 2024; 23: 344–81, disponível em https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S1474-4422%2824%2900038-3 . Acesso em 08/09/2024

3. Sedel F . Inborn errors of metabolism in adults: A diagnostic approach to neurological and psychiatric presentations. In: Inborn metabolic diseases: diagnosis and treatment. Springer Berlin Heidelberg, 2012: 57–74

4. Inborn erros of metabolism: a clinical overview. Disponível em https://www.scielo.br/j/spmj/a/PF5WZNNZssdv6ZcvsbBppfp/?lang=en. Acesso em 17/09/2024

5. A Importância do Centro de Referência Regional na Investigação de Doenças Metabólicas Hereditárias. Disponível em https://www.ufmg.br/congrext/Saude/Saude5.pdf. Acesso em 16/09/2024 

6. About Inborn Errors of Metabolism. Disponível em https://www.genome.gov/Genetic-Disorders/Inborn-Errors-of-Metabolism. Acesso em 08/09/2024

7. Erros inatos do metabolismo: revisão de literatura, disponível em http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-59072006000200008. Acesso em 17/09/2024. 

8. Guía Metabólica. Sant Joan de Déu, Hospital Materno Infantil. Universitat de Barcelona. Disponível em https://metabolicas.sjdhospitalbarcelona.org/sites/default/files/epidemiologia_pt_ma.pdf. Acesso em 08/09/2024

9. Inborn Metabolic Diseases: Diagnosis and Treatment. Disponível em https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-540-28785-8. Acesso em 16/09/2024

10, 11, 13. Doenças metabólicas com manifestações psiquiátricas. Disponível em https://www.scielo.br/j/rpc/a/DF4MsS9vSv8ykPqjjMHrhGL/#. Acesso em 29/09/2024.

12. Porfiria aguda intermitente. Disponível em  https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-hormonais-e-metab%C3%B3licos/porfirias/porfiria-aguda-intermitente. Acesso em 29/09/2024

14. Exome sequencing and the management of neurometabolic disorders, in The New England Journal of Medicine. Disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27276562. Acesso em 08/09/2024

15. Mochel, F., Sedel, F. (2022). Inborn Errors of Metabolism in Adults: A Diagnostic Approach to Neurological and Psychiatric Presentations. In: Saudubray, JM., Baumgartner, M.R., García-Cazorla, Á., Walter, J. (eds) Inborn Metabolic Diseases. Springer, Berlin, Heidelberg. https://doi.org/10.1007/978-3-662-63123-2_2 Acesso em 18/09/2024

16. Cerebral folate deficiency in adults: A heterogeneous potentially treatable condition. Disponível em https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0022510X18304672. Acesso em 16/09/2024