Em todo mundo, a conscientização sobre a Triagem Neonatal é de extrema importância para a saúde pública. Nesse contexto, o Teste do Pezinho desempenha um papel decisivo na detecção precoce de inúmeras enfermidades, como as Doenças Metabólicas Hereditárias (DMH), ou Erros Inatos do Metabolismo (EIM). Identificar essas doenças e tratá-las em momentos oportunos logo após o nascimento fará toda diferença na vida do indivíduo e durante seu tratamento.
As DMH constituem um vasto e heterogêneo grupo de doenças que acometem diferentes vias metabólicas, envolvendo falhas nos processos de degradação ou armazenamento de carboidratos, lipídeos e proteínas.¹,² Dados recentes do Ministério da Saúde apontam que, em cinco anos, o Brasil registrou mais de 17 mil recém-nascidos diagnosticados com alguma doença metabólica detectável.³
Atualmente são conhecidos mais de 550 distúrbios descritos nesse grupo e, embora raros, com cerca de 1 caso a cada 1.000 ou 2.500 nascidos vivos, sua incidência cumulativa ainda é alta em nível mundial.⁴,⁵. Entre as doenças, que podem se manifestar desde a infância até a vida adulta, podemos citar galactosemia, doença da urina em xarope de bordo, frutosemia, biotinidase, doença de Krabbe, fenilcetonúria (PKU), porfiria, doença de Gaucher, síndrome de Hunter, Doença de Niemann-Pick, dentre outras.⁶
O teste do pezinho atual, disponível pelo SUS, está ampliando seu escopo de doenças conforme a Lei 14.154/2021. O novo plano de testagem está dividido em três fases. Na primeira fase, já em vigor desde maio de 2022, são rastreadas sete doenças, como a doença falciforme e outras hemoglobinopatias, hipotireoidismo congênito, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita, toxoplasmose congênita. Há duas DMH incluídas nesse grupo: fenilcetonúria e outras hiperfenilalaninemias e deficiência de biotinidase.⁷ A Espectrometria de Massas em Tandem (MS/MS) trouxe a bioquímica genética para a triagem neonatal, tornando possível o diagnóstico pré-sintomático de muitas DMH, diminuindo potenciais danos neurológicos e intelectuais ao indivíduo e até consequências fatais.⁸
DESAFIOS DIAGNÓSTICOS E JORNADA FAMILIAR
Os principais grupos de DMH com apresentação aguda, grave e de alto impacto na infância, incluem defeitos no metabolismo de carboidratos, defeitos no ciclo da ureia, acidúrias orgânicas, aminoacidopatias, hiperglicinemia não cetótica e defeitos no metabolismo de ácidos graxos.⁹ Os sintomas mais detectados nesse período são: dificuldade na sucção, letargia, acidose metabólica, vômitos, hipotonia, crises convulsivas, hipoglicemia injustificada, dentre outros.¹⁰,¹¹ Frequentemente são confundidos com quadros de infecções exógenas ou septicemia¹¹,¹², o que pode confundir o esclarecimento do quadro e tornar o processo ainda mais angustiante para a família.
Em um cenário de emergência, um diagnóstico definitivo de DMH não é uma meta realista. Controlam-se os sintomas à medida que surgem¹, e diversos fatores contribuem para dificultar os esforços das equipes, como, por exemplo: grande número de distúrbios, semelhança de sintomas com outras doenças, ausência de sinais específicos, dentre outros. Como resultado dessa dificuldade, tais enfermidades podem ser cogitadas de forma tardia pelos pediatras.¹⁰
Para o diagnóstico, são necessários testes laboratoriais, que incluem triagens metabólicas no sangue e na urina, ensaios enzimáticos em leucócitos, fibroblastos, e até análises moleculares.¹⁰ Em casos suspeitos de DMH, é importante levantar o histórico familiar.
Com a identificação do diagnóstico, a equipe deve intervir com tratamentos específicos ou de suporte, juntamente com o acompanhamento clínico pormenorizado. Posteriormente, deve-se avaliar a necessidade de encaminhar para outros especialistas, como, por exemplo, o geneticista, para avaliar o risco de recorrência e fazer o aconselhamento genético adequado.⁷
Diante de todas as adversidades, é imprescindível reforçar o valor do teste do pezinho no início da jornada diagnóstica, a primeira ferramenta de suspeição. A busca pelo diagnóstico representa um desafio significativo na medicina e para a família, marcada por situações dolorosas e prolongadas, múltiplas consultas, exames invasivos e, muitas vezes, inconclusivos, além do sofrimento emocional associado à incerteza do diagnóstico. Esse percurso não só impacta a vida do indivíduo, mas também exerce um pesado ônus psicológico e financeiro sobre os pais, o que exige da equipe médica muito acolhimento e esclarecimento para conduzir a situação.
O PAPEL DECISIVO DA EQUIPE DE SAÚDE NO MANEJO DAS DOENÇAS
A Triagem Neonatal se estabelece como uma ferramenta indispensável na mitigação de enfermidades, visando não apenas esclarecer doenças, mas também alterar todo seu curso. Esse processo é essencial para evitar sequelas clínicas que podem ocorrer caso não sejam manejadas a tempo.
O tratamento das DMH detectadas no teste do pezinho envolve, em primeiro caso, segurança e precisão da equipe médica sobre qual doença está levando aquele organismo ao desequilíbrio bioquímico. Posteriormente, um acompanhamento multidisciplinar por toda vida será de extrema importância, uma vez que, para muitas DMH, não há cura, mas sim medidas de suporte que visam controlar os sintomas e melhorar o bem-estar geral do indivíduo.¹,¹³
As intervenções se dão de acordo com a doença em questão, após sua identificação. Manejo dietético, suplementações e restrições alimentares são importantes para restabelecer o equilíbrio metabólico. Contudo, o ajuste isolado da dieta nem sempre é o suficiente, pois há acúmulo de substratos que continuam sendo formados mesmo após o manejo.¹²,¹³
Deficiências enzimáticas no metabolismo dos aminoácidos costumam acumular substâncias tóxicas, afetando principalmente cérebro, fígado e rins, resultando em toxicidade pelos metabólitos acumulados e deficiência dos produtos essenciais. Por isso, quando falamos em sequelas e danos neurológicos, eles muitas vezes estão relacionados ao período de exposição a esses metabólitos.¹³
TRATAMENTO DE ALGUMAS DOENÇAS METABÓLICAS HEREDITÁRIAS¹³
DHM | TRATAMENTO |
Fenilcetonúria | Restrição de fenilalanina |
Doença da urina do xarope de bordo | Restrição de leucina, isoleucina, valina |
Homocistinúria | Restrição de metionina, suplementação com vitamina B6 e betaína |
Acidúria glutárica tipo 1 | Restrição de lisina e triptofano, suplementação de L-carnitina |
Deficiência de OTC | Restrição de arginina |
Galactosemia | Restrição de lactose e galactose |
Intolerância hereditária à frutose | Restrição de frutose |
Por exemplo, em pacientes com deficiência de biotinidase, o tratamento com biotina leva a uma resposta favorável, revertendo quadro de convulsões, acidose metabólica e manifestações cutâneas. Outro exemplo é o uso da vitamina B12 em pacientes com acidemia metilmalônica (AMM). Seu resultado terapêutico pode reverter a acidemia orgânica.¹³
TESTE DO PEZINHO: MAIS CONSCIENTIZAÇÃO, MAIS PROTEÇÃO
De acordo com o Programa Nacional de Triagem Neonatal, em 2020, 58,06% dos bebês nascidos vivos passaram pela Triagem Neonatal até o 5º dia de vida. No mesmo ano, também foi mensurado com quantos dias de vida os recém-nascidos passavam pela primeira consulta após a descoberta de uma determinada doença. Para a fenilcetonúria, os bebês tiveram sua primeira consulta com 30 dias de vida. Para biotinidase, 47 dias. Todos esses índices ainda estão distantes do ideal para possibilitar tratamento precoce caso haja necessidade.¹⁴
O Teste do Pezinho é elementar no gerenciamento eficiente das doenças metabólicas ao permitir a identificação precoce de inúmeras condições. Além de reduzir significativamente a jornada diagnóstica das famílias, oferece respostas rápidas e claras que guiam as decisões médicas e terapêuticas. Sua importância é inegável, não apenas como uma medida preventiva, mas como um passo fundamental para possibilitar um desenvolvimento mais saudável desde o início da vida.
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REFERÊNCIAS
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- ANVISA. Consulta pública: produtos para doenças metabólicas. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/consulta-publica-produtos-para-doencas-metabolicas. Acesso em 29 jun. 2024.
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